quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Nietzsche, um pensador fora do seu tempo. Adjair Alves

“Mudei-me da casa dos eruditos e bati a porta ao sair. Por muito tempo a minha alma assentou-se faminta à sua mesa. Não sou como eles, treinados a buscar o conhecimento como especialistas em rachar fios de cabelo ao meio. Amo a liberdade. Amo o ar sobre a terra fresca. É melhor dormir em meio às vacas que em meio às suas etiquetas e respeitabilidades.”

A 25 de agosto de 1900, morre Friedrich Wilhelm Nietzsche. Tanto tempo após sua morte, suas palavras, como as de Zaratustra, “sua encarnação” ainda soam como marteladas aos nossos sentidos. Seus aforismos, parecem-nos sinalizar para uma época de inquietude, ou melhor, para um homem inquieto com seu próprio tempo, com a mediocridade de seu mundo, cujos homens deixaram sucumbir seus instintos mais interiores pelo instinto do conhecimento. Para um tempo fora de seu tempo, como ele próprio dizia: “é somente o depois de amanhã que me pertence! Alguns homens nascem póstumos, é porque dirigem, ao mundo em que vivem, uma crítica radical”.

Não poderíamos deixar passar despercebido, o fascínio exercido por um pensador que, em vida, insistiu na negação de todos os valores absolutos considerados tradicionais. Filósofo ao seu próprio modo, amaldiçoado por muitos por ter renegado os grandes sistemas e suas verdades, por considerar a obediência como uma desgraça humana e as religiões, sobretudo cristã, como o “atestado das fraquezas humanas, como a compensá-las”, e os valores religiosos como falsos “para consolar-se da impossibilidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes”, “forjaram o mito da salvação porque não possuíam o corpo”.

Seu nome: Friedrich Wilhelm Nietzsche. Nasceu no vilarejo de Röcken, na região da Turingea, próximo a Lützen e Leipzig, na Prússia, hoje Alemanha Ocidental. a 15 de outubro de 1844. Era filho e neto de pastores protestantes. Órfão de pai aos quatro anos de idade, fato que lhe causou uma profunda impressão que perdurou por toda a vida. Falando do pai, diz ter sido “delicado, amavél e enfermiço, como um ser destinado, apenas, a passar ao largo da vida; mais uma bondosa lembrança da vida que a vida mesma.” (EH, “Porque sou tão sábio”, § 1). Identificou-se com o pai, em seu amor à música, aos passeios campestres, a longas horas entregues à reflexão e no gosto de trajar elegantemente. Há quem afirme que a forma trágica como perdera o pai, resultou no desenvolvimento de uma insegurança, inconstância e pouco equilíbrio emocional e, talvez, resida aí sua dificuldade em relação às mulheres. (ABATH, 1998:47).

Para Nietzsche, a realidade parecia tocar-lhe aos instintos mais inferiores. Negava-se a aceitar um mundo que não lhe tocasse a sensibilidade. Meu futuro me preocupa. Por muitas razões externas e internas ele me parece obscuro e incerto. (...) falta-me força para pôr de lado tantos assuntos diferentes que me interessam. O que hei de estudar? Não sei que decisão tomar mas, é tarefa exclusivamente minha, refletir e escolher.” Aos dezoito anos de idade, manifestava sua necessidade de concentração de esforços de forma bem clara. “Dispensei meu interesse por uma infinidade de domínios, de tal maneira que satisfizesse tudo o que me apraz, me tornaria um homem muito instruído mas, profissionalmente, um animal bem medíocre.

Seu espírito de seriedade em relação à vida era tal que, segundo seu biógrafo, quando criança, um dia, ao presenciá-lo voltar da escola debaixo de chuva torrencial completamente desprovido de agasalho, a passos tranqüilos e sem pressa, sua mãe indagou-o pela razão daquele comportamento ao que lhe respondeu que em sua escola sempre aconselhavam aos alunos, não correr nem saltar, na rua.

Sua mãe o ensinou a ler e a escrever. Aos seis anos de idade, foi encaminhado a uma escola pública para alunos do sexo masculino por sua vó materna. O objetivo era fazê-lo entrar em contato com crianças de estratos sociais mais baixo. Ao fim do curso na escola pública de seu município ingressa no Instituto de Ensino Secundário, de onde, por recomendação, é encaminhado para o Colégio de Pforta, uma escola de grande reputação na Alemanha, para a qual recebeu bolsa de estudo concedida pelo Rei Frederico Guilherme IV, atendendo solicitação de sua mãe. Nietzsche ingressou nesse colégio no dia 5 de outubro de 1859, dez dias antes de completar 15 anos de idade. Tratava-se de uma escola rigorosa. Seu regulamento só autorizava saída dos alunos, por apenas quatro horas, aos domingos. “Quando me deparei com Pforta ante meus olhos acreditei encontrar-me, mais frente a um cárcere, do que à alma mater.” No entanto essa disciplina rígida acabou por substituir a figura e autoridade paterna. “Minha educação em suas partes essenciais ficou sob minha própria responsabilidade. Meu pai morreu muito cedo. Faltou-me a direção severa e madura de um intelecto masculino.

A consciência da responsabilidade humana pelas decisões sobre a vida está expressa de forma clara em suas considerações: “Procure não ser covarde para com as suas ações deixando-as cair, depois de cometidas. O remorso é indecente.” Terminado o curso, Nietzsche mostrou-se grato, em relação a Pforta, à sua dureza e à sua disciplina, aplicadas no momento certo.

Em setembro de 1864, Nietzsche conclui o curso secundário apresentando um trabalho sobre Theógnis de Megara, poeta grego do século VI a. C. Inscreve-se em seguida, na Universidade de Leipzig, a fim de acompanhar os cursos do professor Ritschl, um dos maiores incentivadores de seus estudos de filologia. Abandona, contra a vontade da família, os estudos de teologia porque, segundo ele, era preciso escolher uma especialização. Elege a filologia clássica.

Nietzsche herdou de seu avô materno o hábito de transferir para o papel toda contrariedade ou amargura que tivesse; um meio de acalmar os nervos. Comentando sobre a mudança da família do campo para a vida agitada da cidade, afirma: “tudo isso agiu sobre mim com uma força enorme, que ainda torno a sentir, todos os dias. Sobre a música afirma seu descontentamento: “Passei a sentir um ódio inextinguível contra toda a música moderna, contra tudo o que não era clássico. Mozart, Haydn, Schubert, Mendelssohn, Beethoven e Bach eram as colunas sobre as quais repousava a música alemã e eu mesmo.” Desse modo, desprezava quem não tinha gosto pela música, comparando-os a animais. Dava graças a Deus por facultar ao homem tão formoso prazer.

Estava sempre preocupado com a mistura de bem e mal no mundo. Para ele,a vida não é para ser julgada mas vivida. Os conceitos trazem em si uma carga de significados inventados pelas classes superiores como uma imposição de suas interpretações do mundo. Tudo é máscara, interpretação. Nietzsche quer desconstruir esses sistemas e começa por negá-los, rejeitá-los. É esse o sentido da genealogia nietzscheana.

Para a opinião dominante de sua época inspirada nos grandes sistemas filosóficos, a crítica de Nietzsche fê-lo um personagem incômodo, ante o qual se fecham as portas da cidade. Ele sabia que a verdade da filosofia, não passava de um acordo tácito, imposto dogmaticamente pelos grandes sistemas. A filosofia, dizia, não dava mais conta das obrigações para com a vida. Ela havia atingido o auge da decadência que fora iniciada por Sócrates.

Os grandes sistemas, sejam eles filosóficos, religiosos, políticos ou culturais, servem apenas para aprisionar o homem na sua própria mediocridade. Os seres que a eles se atêm, perderam a capacidade de viver, porque a vida é movimento criativo.

Com Nietzsche, o pensamento é mobilidade inesgotável, eterna criatividade. Não há uma essência mensurável. Tudo é criatividade absoluta. Nenhuma natureza para as coisas, tudo flui. Nenhuma verdade que não seja perspectiva. Desse modo, conclama o homem a se superar, a abandonar sua mediocridade, incorporar o espírito de Zaratustra. Não há lugar, segundo ele, para os grandes sistemas.

Talvez seja essa a razão porque o “velho” pensador esteja ressurgindo das cinzas despertando, em nosso tempo, um crescente interesse por sua obra. Para fazer valer sua afirmação de “homem que nasceu póstumo” foi preciso esperar cem anos, para vê-lo ressurgir como um “fênix”, para finalmente, tornar-se compreendido. Um homem que não ficou no passado, porque pensou “o além do homem” e nos ensinou que o verdadeiro conhecimento toca-nos ao corpo.

______________

Referências

ABATH, Guilherme M. “Nietzsche e a Medicina”. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1998. 299p.

MARTON, Scarlett. “Nietzsche: a transvaloração dos valores”. 2.ed., São Paulo: Moderna, 1993. (col. Logos).

NIETZSCHE. Obras Incompletas. Org. de Gerard Lebrun, trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996.

HALÉVY, Daniel. “Nietzsche: uma biografia”. trad. de Roberto Cortes de Lacerda e Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1983.

Nenhum comentário: